sexta-feira, março 17

A VIDA NA COZINHA



A VIDA NA COZINHA
VERA VILELA



“Naquela mesa ele juntava a gente
E contava contente o que fez de manhã,
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho eu fiquei seu fã.”
Naquela Mesa - Sérgio Bittencourt.



Lembro bem da cena: acordava esfregando os olhos cheios de ramela, grudentos, chamava a mãe, vinha a irmã mais velha para ajudar a limpar. Pijama de flanela que a mãe fazia, o casaquinho de manga comprida, gola, e dois bolsos – nem sei para que os bolsos – calça comprida e só.

Quando chegava na cozinha – que era grande, em volta dela havia três quartos, um para a mãe e o pai, um para os meninos e um para as meninas – a mãe estava lá passando o café no coador de pano que ela mesma costurava. Já tinha tirado do prego por fora da porta a sacola com três filões de pães e no chão dois litros de leite dentro da garrafa de vidro.

Ia ao banheiro, lavava o rosto e voltava pra mesa ainda um pouco zonza, adorava comer pão com o último café que ficava na caneca, bem fraquinho. Eu não tomava leite, não gostava, eu acho.

Aos poucos os irmãos iam um a um se levantando, se arrumando, tomando café e saindo. Quando ficava na cozinha eu e a mãe, pensava que ela nunca comia. Nunca a via tomar café ou almoçar.

Eu ia então brincar “lá fora” no “terrero” como ela mandava, porque filho dentro de casa só aprontava. Quando ela ia lavar a roupa eu implorava pra ela deixar eu lavar as “roupas pequenas” (roupas íntimas), adorava ficar mexendo na água. Ela colocava água em uma grande bacia de alumínio e me dava um pedaço de sabão para esfregar a roupa. Que delícia!

Chegando o horário do almoço ela já me chamava para ajudar. Eu lavava a louça numa pia fora de casa, para alcançá-la eu subia num banquinho de madeira. Ajudava também a lavar os legumes para o almoço. Via o carinho e amor que minha mãe fazia aquela comida e como ela era agradecida por ter arroz e feijão todos os dias na mesa, verdura do quintal, às vezes ovos, muito dificilmente uma galinha e raramente um tiquinho de carne.

A comida era feita no fogão a lenha, apesar de termos um fogão a gás, e eu reclamava quando o arroz ficava com “gosto de fumaça”. Às vezes reclamava e não queria comer chuchu e outras vezes não queria comer ovo. Minha mãe dizia:

– Essa aí é pobre e metida!

Mas eu reclamava não por querer algo melhor, era porque eu não gostava mesmo. Comia na boa somente o arroz e o feijão.

Era muito bom no jantar quando via na mesa, a mãe, o pai e os irmãos mais velhos que ficavam fora o dia todo. O olhar da mãe era de satisfação e dever cumprido. Casa arrumada, roupa lavada, comida feita e na mesa, marmitas prontas para o dia seguinte.

Era ali, na cozinha, que tudo era melhor e diferente. Todos reunidos, conversando, às vezes a mãe brigava com o pai e talheres saíam voando. Eu corria para debaixo da cama e olhava através da cortina que substituía a porta do quarto quando a discussão terminava.

Foi ali naquela mesa que vi minha mãe chorar quando o irmão mais velho disse que ia embora para o interior estudar, também chorou quando viu o lugar do meu outro irmão (o segundo) vazio – ele fugiu com a namorada para casar. Ela colocava o cotovelo na mesa e segurava o rosto entre as mãos, e eu também chorava ao ver suas lágrimas molhando a mesa.

Também no mesmo lugar vi minha irmã mais velha, casada, dizer que nós íamos ser titios, o sorriso de minha mãe era uma coisa difícil de se imaginar. Já tínhamos um sobrinho mais velho mas, morava longe e não tínhamos quase contato.

Enfim, acho que por isso em minha casa, até hoje, recebemos as visitas na cozinha, todos à mesa, conversando, tomando um café fresquinho e, se estiver frio, me arrisco a fazer meu famoso bolinho de chuva.

Só não temos hoje em dia é a mesa com tanta gente, os filhos são poucos e a comida é muita. E na mesa falta: a mãe junto ao pai, rindo ou discutindo, mas juntos.

Um comentário:

parla marieta disse...

Essa sua simplicidade e delicadeza em retratar com fidelidade as delícias do cotidiano, me encantam e emocionam.
Temos muito em comum, difere o número de irmãos. Eu só tinha um irmão.
Mas esse seu texto me remeteu à minha doce e feliz infância, onde os valores eram outros, minha doce amiga.
Te amo muito