MEMÓRIAS DA MENINA DO SÓTÃO I
Vera Vilela
É engraçado como tem coisas que a gente jamais esquece, são fatos que nem sabemos o porquê ficam marcados para sempre na memória. Começo hoje então a deixar registradas aqui minhas memórias, para um dia, quem sabe, meus netos poderem conhecer um pouco mais de mim. Só escreverei sobre o que realmente me lembrar, histórias que apenas ouvi, eu não relatarei.
Minha infância foi compartilhada com três irmãos mais próximos de idade, dos dez que tive. São eles: Francisco (Kico) – 1 ano e 5 meses mais novo, Nilza (Nilzinha) – 1 ano e 2 meses mais velha, Carlos (Carlinhos) – 3 anos e 11 meses mais velho e um ursinho marrom sem nome que me acompanhava o sono à noite.
As mais antigas de minhas recordações são de quando tinha mais ou menos três anos de idade, é de uma casa assobradada em que moramos em Santo André-SP ( até os dois anos morei em Penápolis-SP, mas de nada me recordo). Tinha uma escada que os degraus eram placas de cimento com piso, entre uma placa e outra ficava uma apavorante abertura que permitia que alguém de minha idade se apavorasse. Eu subia a escada de quatro pés, com medo de cair num naqueles buracos, me lembro bem da sensação de aventura em subir e descer. É tudo que me lembro dessa casa.
Depois já vem na memória uma casa em que moramos um bom tempo, também em Santo André, na Vila Assunção. São flashes de situações. A mais bela de todas é a feira de flores em frente ao cemitério, como eu adorava aquelas palmas brancas, coloridas, as rosas de todas as cores, os cravos vermelhos, os brancos e me lembro nitidamente dos brancos com manchas vermelhas, o perfume no ar, as latas com água cheias de flores. E os dentes de leão? Que maravilha. Sempre ligo essa memória a um antigo disco chamado Rancho das Flores.
Aliás, tenho muitas boas lembranças do cemitério que era muito perto de casa. Movimento de pessoas, carros, as flores, nossas brincadeiras de criança dentro dele. Muitas vezes achávamos algumas imagens de santos junto às velas acesas, no crematório. Quando as pessoas não queriam mais as imagens tinham o costume de deixar lá no cemitério. Muitos vieram para minha casa.
Eu achava tudo muito bonito, os túmulos enfeitados, os azulejos que os decoravam, as estátuas de anjos, para mim era tudo muito luxuoso, nem fazia muita idéia do significado de tudo aquilo.
Lembro de minha mãe chegando das casas das patroas – ela era lavadeira – com sacos nas mãos, eram pães velhos. Era uma festa para achar algum com manteiga. Aquele pão tinha um gosto especial de festa, de alegria. Por algumas vezes eu fui levada até uma dessas casas, lindas, com azulejos na cozinha, móveis bonitos, e, nem sei em qual delas, mas uma era especial porque eu tomava leite com Ovomaltine, que luxo!
Nesse bairro eu passei a minha infância até os seis anos de idade. Na passagem do Ano Novo era uma alegria, saíamos eu e meus irmãos, Nilza e Carlinhos, para pedir bom princípio nas casas. Naquela época todo mundo dava algum dinheiro, uma moeda. Era dia de comprarmos guaraná caçulinha, a fábrica da Antarctica era em nossa rua. Chegávamos em casa com muito dinheiro (era o que eu achava) e isso era muito prazeroso.
No Natal meu irmão Paulo cuidava dos presentes, embrulhava um a um com carinho, a gente percebia a alegria dele com isso. Eu sempre ganhava uma boneca dessas que se vendia em feiras, de plástico, com o cabelo emoldurado. A diferença era a roupa que a mãe costurava com carinho na máquina. A sensação de abrir o presente é impossível de representar em palavras.
Meu irmão Paulo adorava montar carrinhos, aquelas caixas que vinham cheias de pecinhas e cola, posso até me lembrar do cheiro de plástico novo e da cola.
Ainda posso sentir o ardor nos olhos de quando minha irmã Rita me dava banho, eu tinha verdadeiro pavor de água nos olhos, eu sempre pegava uma roupa minha e a espremia contra os olhos fechados para poder lavar a cabeça e na hora de pentear os cabelos era outra gritaria.
Eu adorava os vestidinhos que minha mãe costurava pra gente. O tecido era o mesmo do que era feito para minha irmã mais próxima de idade, a Nilzinha, mas os modelinhos eram diferentes, sempre tecidos floridinhos, clarinhos e fresquinhos. As calcinhas também eram feitas pela mãe, ficavam um pouco esquisitas, mas roupa nova era sempre bem-vinda uma vez que usávamos muita roupa ganhada de parentes que estavam numa situação financeira melhor.
Nunca me esqueci o único presente que ganhei de minha madrinha, um conjuntinho lindo rendado de baby-doll, coisa de gente rica! Eu apenas pude ver, minha mãe rapidamente deu a uma prima para que o vendesse.
Meu irmão mais novo, o Kico, sempre ganhava presentes melhores e a qualquer tempo, ele nasceu especial e por isso todos tratavam a ele de um modo diferente. Claro que nessa época eu não entendia isso porque era apenas um ano e cinco meses mais velha, o ciúme era muito grande e eu não era uma irmã muito boazinha não, por diversas vezes judiava dele, fazendo-o chorar, isso foi até certa idade em que eu compreendi melhor a situação, mas numa família numerosa como a minha – dez irmãos – tinha que haver briga por atenção.
Nesta casa me lembro ainda de uma vizinha jovem que me ensinou precocemente a ler e escrever, brincávamos de escolinha, mas na verdade eu aprendia tudo, achava maravilhosa a lousa que ela usava e o giz que escrevia e tive o primeiro contato com a cartilha Caminho Suave com todas aquelas ilustrações bonitas.
No porão de minha casa morava uma senhora que engravidou e teve seu filho em casa, sendo que minha mãe a ajudou no parto. O menino cresceu cheio de presentes bonitos que a mãe deixava sobre o guarda-roupa ou pendurados para que ele não estragasse.
Durante toda minha infância a melhor lembrança de parentes que tenho é do meu tio Zébinho (Euzébio), ele morava no interior, mas vinha freqüentemente à minha casa e trazia sempre guloseimas para todos, dele eu não sentia nenhuma diferença entre eu e meu irmão caçula, era o nosso tio mais querido.
A ida à igreja aos domingos me vem muito vagamente na memória, a lembrança mais gostosa e nítida são os santinhos de papel que ganhávamos das freiras na porta. Eu guardava todos como relíquia, eram lindos, coloridos, alguns com detalhes em ouro, um verdadeiro tesouro, mais tarde um pouco eu me achava a mais bela das criaturas quando colocava um pequeno véu branco rendado na cabeça para rezar. Que luxo!
Havia também ali perto um parquinho que era uma grande diversão, esporadicamente alguém nos levava, não me recordo quem, parecia tão distante e hoje sei que são poucas quadras.
Nesse período (até os seis anos mais ou menos) também é forte a recordação de minha mãe e irmãs querendo, a todo custo, que eu largasse a chupeta. Imagina! Eu adorava esse vício, era a única coisa na casa que era mesmo minha e de mais ninguém. Até a cama era repartida, eu dormia na mesma cama que a Terezinha – a irmã mais velha, e Nilza dormia com Rita – outra irmã com mais idade. Eram beliches no quarto para acomodar tantos filhos. Me recordo uma vez que minha mãe escorregou, arrumando a cama de cima do beliche, e cortou muito a parte interna do braço num parafuso da grade, eu fiquei muito assustada com aquilo.
Recordo também de uma vez que minha irmã foi atropelada por uma bicicleta na calçada, ela levou pontos perto do olho e no joelho. Eu fiquei com muita inveja do dengo que ela recebeu.
Nem de minha mãe tenho muitas recordações nesse período, a não ser as surras, ela estava sempre muito ocupada com as roupas que lavava para fora ou com meu irmão menor, levando em médicos, em escolas especializadas, ele entrou na APAE logo em seu início. Eu tinha muito ciúme dos cuidados especiais que ele tinha.
Infelizmente tem uma passagem muito ruim dessa época (eu deveria ter uns cinco anos), com um vizinho jovem que resolveu usar das amiguinhas de sua irmã mais nova para experiências nada agradáveis em troca de promessas nunca cumpridas, no caso era ganhar uma boneca Emília, muito desejada naquele tempo. A experiência poderia ter sido uma passagem quase ignorada se não tivesse sido tratada com tanta austeridade e ignorância, mas éramos simples e muito pobres, faltava instrução para lidar melhor com o assunto. Dessa forma acabei amadurecendo a malícia cedo demais.
Foi nesse período também que tive uma das melhores experiências de minha infância. Eu e meus irmãos ensaiávamos numa escola de dança e nos apresentávamos na televisão. Isso sim era um luxo. Além de poder passear de carro (uma velha Kombi), usar roupas lindas – lembro-me de um conjuntinho vermelho, a calcinha toda bordada com lantejoulas, ainda posso fechar os olhos e ver e sentir aquela seda macia – ganhávamos sempre nas apresentações: uma flâmula, um pacote de bolacha e refrigerante. Um verdadeiro banquete.
As danças eram apresentadas nos programas Hugo Santana, Canarinho, Pulman Junior e também na Hebe Camargo – um programa na rádio que tinha auditório, quem estava em casa só ouvia a música que nós dançávamos.
Uma música inesquecível desse período foi Twist and shout dos Beatles que eu dançava feito louca. Em casa sempre que tinha alguma visita diferente me pediam e eu repetia os movimentos da dança.
Assim foram os primeiros seis anos de minha vida.