OLHOS AZUIS
Vera Vilela
Antes de entrar pode me contar sua história? Eu adoro histórias.
Está bem, eu conto, pelos seus olhos azuis.
Dormia eu no banco da praça, defronte à igreja, quando fui acordada pelas doze badaladas que anunciavam a hora do almoço. Que preguiça! O sol esquentava meu corpo de uma forma tão gostosa! Um sol que não queimava, apenas acariciava, suavemente, minha pele, com seus fracos raios.
Sentei-me e esfreguei os olhos para melhor ver o que se passava ao meu redor. Crianças chutavam uma bola murcha de borracha, fazendo uma algazarra absurda e, ao mesmo tempo, faziam sentir-me em casa - parecíamos uma família.
Chamei os menores, Cleoneide de 7 anos e Joseneide de 5. Levei os meninos até o chafariz e lavei o rosto e as mãos deles com aquela água gelada, mas limpinha, limpinha. Lavei meu rosto e enfiei a mão no bolso do casaco velho e fedendo suor, que me cobriu do frio da noite. Tirei uma velha escova de dente - achada no lixo - e esfreguei os poucos dentes que ainda me restavam na boca.
Cleoneide não deixou que eu limpasse seus dentes, dizia que a água gelada doía os dentes; Joseneide já não se importava, eu esfregava seus dentes e admirava sua boca linda. Esse menino foi feito no capricho, com amor, não foi sexo em troca de comida não - foi amor mesmo.
Joseneide tinha os olhos azuis como o pai, pele clarinha e cabelos bem pretinhos como o meu, ia dar um rapaz lindo.
Cleoneide, tadinha, saiu à mãe: um narigão enorme e redondo, uma boca murcha, olhos pretos e cabelo castanho, muito feia, a coitadinha, e sem sorte de pai - um bebum de rua que só me servia mesmo prá me aquecer nas noites frias.
Pronto: os menores na mão, vou até a porta de Dona Maristela - uma santa que Deus colocou na minha vida - que me dá o almoço de todo dia e, só não tomo o café caprichado porque teria que acordar cedo e não consigo acordar antes do meio dia. As crianças dormem num cômodo que ela ajeitou no fundo da casa, mas eu não quero coleira, gosto de me sentir solta e procurar um homem que me sustente.
Dona Maristela, todo dia pela manhã, deixa os 6 meninos tomarem banho em sua casa e troca os pequenos prá mim, lavando as roupas que ficam por lá. Santa mulher! Viúva, tem um casal de filhos - José Augusto e Cleo. Por isso meus filhos ganharam estes nomes - claro que juntei o meu, Neide. Eles nem registro tinham, foi ela e a filha que acertaram tudo pra mim.
Dona Cléo é advogada e tem um filhinho, o Ricardo Augusto, da idade do meu Joseneide. Os dois brincavam como irmãos na casa da avó, mas agora a mãe dele achou melhor ele ir para a escolinha. Os dois têm olhos azuis, que chamam a atenção de todo mundo.
É estranho: a porta da casa está cheia de gente, um corre-corre. Quando me aproximo as pessoas se afastam. Sei que meu cheiro não é bom, mas quero saber o que acontece. Mando então Joseneide, que está limpinho e de roupa trocada pela madrinha, para ver o que aconteceu.
Joseneide vem numa rasteira, chega bufando e diz:
- Mãe, mãe, o Ricardinho se machucou levou uma pedrada na cabeça! Foi outro amiguinho da escola que fez isso. Ele está no hospital!
Eu penso: meu Deus, coitada da dona Maristela, mulher tão boa, ela e sua filha, terem um desgosto desse.
Fico ali até bem de tardezinha, com o estômago roncando e as crianças chorando de fome, mas não vou incomodar dona Maristela. Peço para os meninos ficarem quietos e chego devagar perto da casa para ver se está tudo mais calmo.
Quando chego no portão da garagem, ouço a filha de dona Maristela falando alto:
- Viu mãe? Viu no que dá suas benfeitorias? Fica cuidando de um bando de bandidinhos e não posso deixar meu filho aqui! Agora o menino se machucou na escola e pode até perder a visão! Eu não quero nunca mais ver essa gente fedida por aqui.
Saio correndo, desembestada, para junto dos meus filhos; peço a eles que juntem suas coisas porque vamos embora. Eles começam a chorar, dizem que querem se despedir da madrinha, mas eu digo que não podem, que ela não está em casa, e puxo a filharada.
Ao chegar na rodoviária fico até as 7 horas da noite, quando um ônibus que vai recolher me leva até a cidade vizinha e, quem sabe arrumo alguma coisa para a gente comer.
Agradeço ao motorista e desço do ônibus. Que azar: uma noite fria pela frente, ninguém nas ruas, dia de semana, acho que hoje não vamos ter nada para comer! Andamos pela rua procurando um abrigo para dormir, olho para os filhos e sorrio, tranqüilizo-os, já passamos momentos piores. Joseneide chora, quer a madrinha, quer sua cama, quer comer. Enxugo minhas lágrimas teimosas e o abraço, digo que logo voltaremos. Me sinto tão enganada, tão injustiçada, tão....tão.....só.
Mas, força Neide! você escolheu essa vida, agüente firme, eles só têm a você! Quando lembro dos gatos de Dona Maristela dormindo em caminhas que parecem camas de príncipes,almofadadas, me dá um nó na garganta, mas, coitada, ela não tem culpa!
Lembro do dia em que cheguei à cidade com Joseneide, ainda pequenino, nos braços: todo mundo vinha olhar de perto os olhos do menino, de um azul tão brilhante que mais parecia uma pedra preciosa, um cristal que iluminava seu rosto clarinho. Ele nem nome tinha ainda, eu o chamava de "anjinho".
Acordo de meus pensamentos quando vejo um viaduto vazio, sem nenhum morador, e é perto de uma padaria, tem um supermercado também, onde os meninos podem olhar os carros e ganharem uns trocados. Deus me ouviu! Chego embaixo do viaduto e é uma beleza: parece que é novo, não é de cimento, graças a Deus! É terra batida. Os meninos correm no lixo do supermercado e voltam com as sacolas cheias. Trouxeram papelões limpinhos que deu pra aconchegar a todos para dormir e ainda sobrou alguns para servirem de parede e nos guardar do frio.
Maravilha: acharam algumas frutas amassadas, mas ainda boas pra comer; tem pão velho - com sujeira, mas a gente limpa - os meninos aprenderam direitinho. Acharam até um pedaço de carne passada: é só a gente lavar bem e colocar no fogo que não tem perigo nenhum. Uma amiga de rua me ensinou: a carne pode até estar podre, se você torrar bem ela, não fica com gosto ruim e nem faz mal.
Fazemos um jantar e tanto, estou até feliz, fazia tanto tempo que não ficávamos tão juntos assim! Mas os meninos reclamam que a cama esta dura e estão com frio! Eu avisei que não gostava dessa idéia de deixar nossas coisas na casa de dona Maristela. Deixei um cobertor nosso lá: não é grande coisa mas, daria para aquecer a todos.
Finalmente todos dormem, fico ainda acordada muito tempo, pensando na vida. Poucas vezes me arrependi do caminho que tomei, mas, hoje é um desses dias. Me lembro da casa arrumada, os maiores ainda eram pequenos, todos arrumados e limpinhos. O marido trazendo pão fresquinho à noite, todos juntos na mesa agradecendo a Deus pela comida. Mas junto com esta lembrança vêm também as noites e mais noites em que apanhei dele feito criança! Se ele tivesse qualquer problema no trabalho eu já sabia como seria minha noite: surra na certa! E não podia chorar para não assustar as crianças ainda mais.
Havia noites em que ele chegava muito tarde, bêbado e cheirando perfume barato, me xingando, dizendo que eu estava ficando velha e feia e que estava também gorda e barriguda, que qualquer mulher de rua era mais bonita que eu. Mulheres de rua? Mulheres como eu era quando ele me recolheu com 15 anos de idade e disse que me daria uma casa e família, coisa que eu nunca tivera antes!
Me lembrei da satisfação que tive ao abrir as portas da minha casa para todos os mendigos da cidade e antigas amigas da rua e saí com os 3 filhos pequenos e um ainda na barriga, sem nada levar, apenas umas poucas roupas das crianças. Nunca mais voltei por aqueles lados e nem tive notícias dele. Deve estar judiando de alguma mulher e fazendo filhos nela.
Finalmente durmo. Nesta noite sonho com um anjo que desce do céu e me ajuda: é um anjo lindo como o Joseneide e apenas sorri para mim, como que dizendo que tudo será diferente.
Sou acordada às pressas, puxada pelos braços e vejo que meus filhos já estão dentro do carro que parece um camburão da polícia, mas não é. Meu medo se torna realidade: o conselho tutelar me pegou.
Chego até o escritório do conselho tutelar sozinha, o tempo todo pergunto pelos meus filhos e ninguém me diz nada, só me mandam aguardar e me dizem que eles estão bem. A assistente social me enche de perguntas e pelo tipo de pergunta eu já imagino meu destino. Recebo roupas, tomo um banho no albergue público, almoço e permaneço ali a tarde toda. Começo a conversar com um rapaz que não deve ter mais de 30 anos. Ele está ali porque a família o expulsou de casa. Diz que é gente boa, de família, mas fede igual a um bode. Posso perceber, pelo tremer das mãos e os olhos fundos, que se trata de um drogado, bicho feio até na rua - ninguém quer nada com eles. Ele me diz que o pai é advogado e que se saírem juntos ele consegue a guarda das crianças para mim, dou uma sonora gargalhada e fico na minha, vou para o outro lado do galpão.
Passo ali dois dias sem saber meu destino e dos meus filhos. Eu os vi por duas vezes, porque o menorzinho chorava por mim e pela madrinha. Estavam separados os meninos e as meninas, por isso chorava. Mandei colocarem Cleoneide junto a ele que pararia a choradeira.
Fiquei sabendo que fizeram o que pedi e ele agora estava mais calmo. Dois dos maiores sumiram, me pediram desculpa por não terem tomado conta dos meus filhos e só, mas também já era hora deles seguirem seus caminhos. O mais velho tem 12 , o segundo tem 11, depois vêm as meninas de 10 e 9 anos - essas também já estão mocinhas, podem se virar bem. A Aparecida estudou a primeira série e sabe até escrever, já ensinou os 3 irmãos mais velhos a escrever também! Diz que vai ser professora! Coitada, não sabe o que é viver na rua. Por sorte, já tem um corpinho bonito. Vai conseguir ganhar a vida de uma maneira mais fácil!
Paro na porta do Juizado de Menores, aonde irão me dizer o destino dos meus filhos. Estou morta de saudades do Joseneide: aqueles olhinhos azuis me fazem muita falta, quando vou esmolar e vêem seus olhinhos - não resistem e sempre me dão algo de bom, oferecem ajuda, dão roupa, calçado e comida. As roupas e calçados eu consigo vender nos brechós ou trocar por roupa mais velha, como posso esmolar com roupas limpas e novas e com filhos crescidos? Já estou muito velha e gasta para a vida da rua, mês passado - não me lembro o dia, mas sei que nasci em outubro - fiz 28 anos.
Espero muito tempo para falar com o juiz. Deviam ter me dado almoço antes: a barriga ronca de fome. Finalmente me chamam.
Que coisa mais bonita aquilo tudo! Aquela sala arrumada, com carpete no chão, até parece a casa de dona Maristela, coitada, só agora lembrei dela, o que terá havido com seu neto?
Me sento em frente ao juiz. A assistente social que conversou comigo também está lá e tem mais duas pessoas que não sei quem são. Me enchem novamente de perguntas. Eu estou zonza de fome e até esqueço a importância daquelas perguntas - o que eu quero mesmo é encher minha barriga.
O juiz diz que tem uma pessoa interessada em ficar com meus dois filhos menores e pergunta se estou disposta a autorizar a adoção. Levo um susto: Ficar sem Joseneide?! Ficar sem ver aqueles olhos azuis que me lembram o único amor que tive na vida?
Não, eu não poderia deixar! Ver os olhinhos azuis do Joseneide de manhã era como comer pão com mortadela e tomar tubaina gelada: uma delícia!
Pergunto então ao juiz quem quer adotar meus filhos, porque afinal, Joseneide é lindo, mas Cleoneide coitada, quem iria querer ficar com ela?
O juiz chama para a sala a pessoa que quer adotá-los. Eu não me assusto. Quem entra é dona Maristela, que vem ao meu encontro e me dá aquele abraço de sempre, sem nojo, sem cuidados. Santa alma esta!
Ela então me diz:
- Neide, estou disposta a cuidar dos seus dois filhos menores como se fossem meus! Estou te oferecendo o mesmo de sempre: continuarão todos morando no quartinho que preparei, só que os dois pequenos serão como meus filhos e você pode ficar perto deles o tempo todo, apenas não poderá mais leva-los embora. Conversei com todos eles ontem.As meninas maiores não querem voltar para casa, dizem que querem seguir sua vida, então não vou obrigá-las, mas os pequenos querem ficar em casa.
- Mas, dona Maristela, eu ouvi sua filha dizer que não quer mais meus filhos na sua casa! Ouvi isso lá do portão no dia em que seu neto se machucou na escola.Por isso fugi.
- Pois é Neide, naquele dia, minha filha e eu tivemos uma conversa difícil, e ela estava magoada, porque eu disse que a diferença entre vocês duas é que: Ela se desviou na vida, fugiu com um drogado, acabou tendo o filho sem pai, mas tinha a mim para ampara-la e ajuda-la, coisa que você nunca teve.Depois de conversarmos muito e ela reconhecer que estava sendo egoísta, foi procurar as crianças porque se lembrou que estavam sem almoço e não encontrou mais ninguém. Como advogada e conhecedora de pessoas influentes na justiça, não sossegou enquanto não encontrou vocês. Ela está muito arrependida e queria ela mesmo adotar os meninos, mas eu neguei, ainda tenho idade para cuidar dos seus filhos. Meu neto está bem, tudo não passou de um susto e ele já chorou muito perguntando pelo Joseneide.
Mas, meu Deus! Como poderia eu me separar do pequeno Joseneide? Mas também não seria justo eu dar meus filhos para aquela mulher e ficar por perto sem deixá-los seguir sua vida! Então não me restam muitas opções: dar os filhos e sumir, ou, provavelmente, ficar sem eles e deixá-los no conselho tutelar até que eu arrumasse um emprego. Mas, arrumar emprego de quê? Aonde? Se até os estudados estavam desempregados?
O juiz me olhou com uma cara de raiva, a assistente social também, e eu senti que só sairia bem dali se fizesse o que queriam: dar meus filhos para aquela mulher, aquela santa mulher que sempre cuidou deles sem o menor interesse, mas que agora me cobrava todos os dias e noites de sossego que me dera.
Assinei todos os papéis até sem sentir. Só pedi para conversar com eles antes de ir embora. Dona Maristela insistiu para que eu não ficasse longe deles, mas eu sabia o que tinha a fazer.
Fui até a creche onde estavam as duas meninas e consegui conversar a sós com elas. Me beijaram carinhosamente e disseram:
- Mãe, nós sabemos que somos um encargo em sua vida, por isso vamos nos separar. Os meninos estiveram aqui no muro e combinamos de fugir hoje à noite. Estaremos todos juntos, e você sabe que nos viramos muito bem sem aquela tia chata. Pode seguir sua vida tranqüila, que vamos ficar bem. Com você perto da gente também não dá, pois não podemos ser livres.
Depois fui ver os pequenos. Quando me viu, Joseneide correu e se escondeu atrás do escorrega junto com a irmã. Os dois estavam limpinhos, bonitos e arrumados. A única coisa que pude ver de longe era o brilho dos olhos azuis do meu filho querido.
Eu me despedi de dona Maristela, enxuguei o rosto e me pus a caminhar. Abri o pacote que ela me deu e achei R$ 200,00. Nunca em minha vida eu vi tanto dinheiro junto! Neste momento meu coração doeu apertado: senti que tinha vendido meus dois filhos por R$200,00! Estava passando sobre o viaduto neste momento e só me lembro que voava, voava, quando vi seus olhos azuis brilhando e você me oferecendo a mão.
E juntos chegamos aqui assim, voando.
Agora pode me dizer onde estou?
Vera Vilela
Antes de entrar pode me contar sua história? Eu adoro histórias.
Está bem, eu conto, pelos seus olhos azuis.
Dormia eu no banco da praça, defronte à igreja, quando fui acordada pelas doze badaladas que anunciavam a hora do almoço. Que preguiça! O sol esquentava meu corpo de uma forma tão gostosa! Um sol que não queimava, apenas acariciava, suavemente, minha pele, com seus fracos raios.
Sentei-me e esfreguei os olhos para melhor ver o que se passava ao meu redor. Crianças chutavam uma bola murcha de borracha, fazendo uma algazarra absurda e, ao mesmo tempo, faziam sentir-me em casa - parecíamos uma família.
Chamei os menores, Cleoneide de 7 anos e Joseneide de 5. Levei os meninos até o chafariz e lavei o rosto e as mãos deles com aquela água gelada, mas limpinha, limpinha. Lavei meu rosto e enfiei a mão no bolso do casaco velho e fedendo suor, que me cobriu do frio da noite. Tirei uma velha escova de dente - achada no lixo - e esfreguei os poucos dentes que ainda me restavam na boca.
Cleoneide não deixou que eu limpasse seus dentes, dizia que a água gelada doía os dentes; Joseneide já não se importava, eu esfregava seus dentes e admirava sua boca linda. Esse menino foi feito no capricho, com amor, não foi sexo em troca de comida não - foi amor mesmo.
Joseneide tinha os olhos azuis como o pai, pele clarinha e cabelos bem pretinhos como o meu, ia dar um rapaz lindo.
Cleoneide, tadinha, saiu à mãe: um narigão enorme e redondo, uma boca murcha, olhos pretos e cabelo castanho, muito feia, a coitadinha, e sem sorte de pai - um bebum de rua que só me servia mesmo prá me aquecer nas noites frias.
Pronto: os menores na mão, vou até a porta de Dona Maristela - uma santa que Deus colocou na minha vida - que me dá o almoço de todo dia e, só não tomo o café caprichado porque teria que acordar cedo e não consigo acordar antes do meio dia. As crianças dormem num cômodo que ela ajeitou no fundo da casa, mas eu não quero coleira, gosto de me sentir solta e procurar um homem que me sustente.
Dona Maristela, todo dia pela manhã, deixa os 6 meninos tomarem banho em sua casa e troca os pequenos prá mim, lavando as roupas que ficam por lá. Santa mulher! Viúva, tem um casal de filhos - José Augusto e Cleo. Por isso meus filhos ganharam estes nomes - claro que juntei o meu, Neide. Eles nem registro tinham, foi ela e a filha que acertaram tudo pra mim.
Dona Cléo é advogada e tem um filhinho, o Ricardo Augusto, da idade do meu Joseneide. Os dois brincavam como irmãos na casa da avó, mas agora a mãe dele achou melhor ele ir para a escolinha. Os dois têm olhos azuis, que chamam a atenção de todo mundo.
É estranho: a porta da casa está cheia de gente, um corre-corre. Quando me aproximo as pessoas se afastam. Sei que meu cheiro não é bom, mas quero saber o que acontece. Mando então Joseneide, que está limpinho e de roupa trocada pela madrinha, para ver o que aconteceu.
Joseneide vem numa rasteira, chega bufando e diz:
- Mãe, mãe, o Ricardinho se machucou levou uma pedrada na cabeça! Foi outro amiguinho da escola que fez isso. Ele está no hospital!
Eu penso: meu Deus, coitada da dona Maristela, mulher tão boa, ela e sua filha, terem um desgosto desse.
Fico ali até bem de tardezinha, com o estômago roncando e as crianças chorando de fome, mas não vou incomodar dona Maristela. Peço para os meninos ficarem quietos e chego devagar perto da casa para ver se está tudo mais calmo.
Quando chego no portão da garagem, ouço a filha de dona Maristela falando alto:
- Viu mãe? Viu no que dá suas benfeitorias? Fica cuidando de um bando de bandidinhos e não posso deixar meu filho aqui! Agora o menino se machucou na escola e pode até perder a visão! Eu não quero nunca mais ver essa gente fedida por aqui.
Saio correndo, desembestada, para junto dos meus filhos; peço a eles que juntem suas coisas porque vamos embora. Eles começam a chorar, dizem que querem se despedir da madrinha, mas eu digo que não podem, que ela não está em casa, e puxo a filharada.
Ao chegar na rodoviária fico até as 7 horas da noite, quando um ônibus que vai recolher me leva até a cidade vizinha e, quem sabe arrumo alguma coisa para a gente comer.
Agradeço ao motorista e desço do ônibus. Que azar: uma noite fria pela frente, ninguém nas ruas, dia de semana, acho que hoje não vamos ter nada para comer! Andamos pela rua procurando um abrigo para dormir, olho para os filhos e sorrio, tranqüilizo-os, já passamos momentos piores. Joseneide chora, quer a madrinha, quer sua cama, quer comer. Enxugo minhas lágrimas teimosas e o abraço, digo que logo voltaremos. Me sinto tão enganada, tão injustiçada, tão....tão.....só.
Mas, força Neide! você escolheu essa vida, agüente firme, eles só têm a você! Quando lembro dos gatos de Dona Maristela dormindo em caminhas que parecem camas de príncipes,almofadadas, me dá um nó na garganta, mas, coitada, ela não tem culpa!
Lembro do dia em que cheguei à cidade com Joseneide, ainda pequenino, nos braços: todo mundo vinha olhar de perto os olhos do menino, de um azul tão brilhante que mais parecia uma pedra preciosa, um cristal que iluminava seu rosto clarinho. Ele nem nome tinha ainda, eu o chamava de "anjinho".
Acordo de meus pensamentos quando vejo um viaduto vazio, sem nenhum morador, e é perto de uma padaria, tem um supermercado também, onde os meninos podem olhar os carros e ganharem uns trocados. Deus me ouviu! Chego embaixo do viaduto e é uma beleza: parece que é novo, não é de cimento, graças a Deus! É terra batida. Os meninos correm no lixo do supermercado e voltam com as sacolas cheias. Trouxeram papelões limpinhos que deu pra aconchegar a todos para dormir e ainda sobrou alguns para servirem de parede e nos guardar do frio.
Maravilha: acharam algumas frutas amassadas, mas ainda boas pra comer; tem pão velho - com sujeira, mas a gente limpa - os meninos aprenderam direitinho. Acharam até um pedaço de carne passada: é só a gente lavar bem e colocar no fogo que não tem perigo nenhum. Uma amiga de rua me ensinou: a carne pode até estar podre, se você torrar bem ela, não fica com gosto ruim e nem faz mal.
Fazemos um jantar e tanto, estou até feliz, fazia tanto tempo que não ficávamos tão juntos assim! Mas os meninos reclamam que a cama esta dura e estão com frio! Eu avisei que não gostava dessa idéia de deixar nossas coisas na casa de dona Maristela. Deixei um cobertor nosso lá: não é grande coisa mas, daria para aquecer a todos.
Finalmente todos dormem, fico ainda acordada muito tempo, pensando na vida. Poucas vezes me arrependi do caminho que tomei, mas, hoje é um desses dias. Me lembro da casa arrumada, os maiores ainda eram pequenos, todos arrumados e limpinhos. O marido trazendo pão fresquinho à noite, todos juntos na mesa agradecendo a Deus pela comida. Mas junto com esta lembrança vêm também as noites e mais noites em que apanhei dele feito criança! Se ele tivesse qualquer problema no trabalho eu já sabia como seria minha noite: surra na certa! E não podia chorar para não assustar as crianças ainda mais.
Havia noites em que ele chegava muito tarde, bêbado e cheirando perfume barato, me xingando, dizendo que eu estava ficando velha e feia e que estava também gorda e barriguda, que qualquer mulher de rua era mais bonita que eu. Mulheres de rua? Mulheres como eu era quando ele me recolheu com 15 anos de idade e disse que me daria uma casa e família, coisa que eu nunca tivera antes!
Me lembrei da satisfação que tive ao abrir as portas da minha casa para todos os mendigos da cidade e antigas amigas da rua e saí com os 3 filhos pequenos e um ainda na barriga, sem nada levar, apenas umas poucas roupas das crianças. Nunca mais voltei por aqueles lados e nem tive notícias dele. Deve estar judiando de alguma mulher e fazendo filhos nela.
Finalmente durmo. Nesta noite sonho com um anjo que desce do céu e me ajuda: é um anjo lindo como o Joseneide e apenas sorri para mim, como que dizendo que tudo será diferente.
Sou acordada às pressas, puxada pelos braços e vejo que meus filhos já estão dentro do carro que parece um camburão da polícia, mas não é. Meu medo se torna realidade: o conselho tutelar me pegou.
Chego até o escritório do conselho tutelar sozinha, o tempo todo pergunto pelos meus filhos e ninguém me diz nada, só me mandam aguardar e me dizem que eles estão bem. A assistente social me enche de perguntas e pelo tipo de pergunta eu já imagino meu destino. Recebo roupas, tomo um banho no albergue público, almoço e permaneço ali a tarde toda. Começo a conversar com um rapaz que não deve ter mais de 30 anos. Ele está ali porque a família o expulsou de casa. Diz que é gente boa, de família, mas fede igual a um bode. Posso perceber, pelo tremer das mãos e os olhos fundos, que se trata de um drogado, bicho feio até na rua - ninguém quer nada com eles. Ele me diz que o pai é advogado e que se saírem juntos ele consegue a guarda das crianças para mim, dou uma sonora gargalhada e fico na minha, vou para o outro lado do galpão.
Passo ali dois dias sem saber meu destino e dos meus filhos. Eu os vi por duas vezes, porque o menorzinho chorava por mim e pela madrinha. Estavam separados os meninos e as meninas, por isso chorava. Mandei colocarem Cleoneide junto a ele que pararia a choradeira.
Fiquei sabendo que fizeram o que pedi e ele agora estava mais calmo. Dois dos maiores sumiram, me pediram desculpa por não terem tomado conta dos meus filhos e só, mas também já era hora deles seguirem seus caminhos. O mais velho tem 12 , o segundo tem 11, depois vêm as meninas de 10 e 9 anos - essas também já estão mocinhas, podem se virar bem. A Aparecida estudou a primeira série e sabe até escrever, já ensinou os 3 irmãos mais velhos a escrever também! Diz que vai ser professora! Coitada, não sabe o que é viver na rua. Por sorte, já tem um corpinho bonito. Vai conseguir ganhar a vida de uma maneira mais fácil!
Paro na porta do Juizado de Menores, aonde irão me dizer o destino dos meus filhos. Estou morta de saudades do Joseneide: aqueles olhinhos azuis me fazem muita falta, quando vou esmolar e vêem seus olhinhos - não resistem e sempre me dão algo de bom, oferecem ajuda, dão roupa, calçado e comida. As roupas e calçados eu consigo vender nos brechós ou trocar por roupa mais velha, como posso esmolar com roupas limpas e novas e com filhos crescidos? Já estou muito velha e gasta para a vida da rua, mês passado - não me lembro o dia, mas sei que nasci em outubro - fiz 28 anos.
Espero muito tempo para falar com o juiz. Deviam ter me dado almoço antes: a barriga ronca de fome. Finalmente me chamam.
Que coisa mais bonita aquilo tudo! Aquela sala arrumada, com carpete no chão, até parece a casa de dona Maristela, coitada, só agora lembrei dela, o que terá havido com seu neto?
Me sento em frente ao juiz. A assistente social que conversou comigo também está lá e tem mais duas pessoas que não sei quem são. Me enchem novamente de perguntas. Eu estou zonza de fome e até esqueço a importância daquelas perguntas - o que eu quero mesmo é encher minha barriga.
O juiz diz que tem uma pessoa interessada em ficar com meus dois filhos menores e pergunta se estou disposta a autorizar a adoção. Levo um susto: Ficar sem Joseneide?! Ficar sem ver aqueles olhos azuis que me lembram o único amor que tive na vida?
Não, eu não poderia deixar! Ver os olhinhos azuis do Joseneide de manhã era como comer pão com mortadela e tomar tubaina gelada: uma delícia!
Pergunto então ao juiz quem quer adotar meus filhos, porque afinal, Joseneide é lindo, mas Cleoneide coitada, quem iria querer ficar com ela?
O juiz chama para a sala a pessoa que quer adotá-los. Eu não me assusto. Quem entra é dona Maristela, que vem ao meu encontro e me dá aquele abraço de sempre, sem nojo, sem cuidados. Santa alma esta!
Ela então me diz:
- Neide, estou disposta a cuidar dos seus dois filhos menores como se fossem meus! Estou te oferecendo o mesmo de sempre: continuarão todos morando no quartinho que preparei, só que os dois pequenos serão como meus filhos e você pode ficar perto deles o tempo todo, apenas não poderá mais leva-los embora. Conversei com todos eles ontem.As meninas maiores não querem voltar para casa, dizem que querem seguir sua vida, então não vou obrigá-las, mas os pequenos querem ficar em casa.
- Mas, dona Maristela, eu ouvi sua filha dizer que não quer mais meus filhos na sua casa! Ouvi isso lá do portão no dia em que seu neto se machucou na escola.Por isso fugi.
- Pois é Neide, naquele dia, minha filha e eu tivemos uma conversa difícil, e ela estava magoada, porque eu disse que a diferença entre vocês duas é que: Ela se desviou na vida, fugiu com um drogado, acabou tendo o filho sem pai, mas tinha a mim para ampara-la e ajuda-la, coisa que você nunca teve.Depois de conversarmos muito e ela reconhecer que estava sendo egoísta, foi procurar as crianças porque se lembrou que estavam sem almoço e não encontrou mais ninguém. Como advogada e conhecedora de pessoas influentes na justiça, não sossegou enquanto não encontrou vocês. Ela está muito arrependida e queria ela mesmo adotar os meninos, mas eu neguei, ainda tenho idade para cuidar dos seus filhos. Meu neto está bem, tudo não passou de um susto e ele já chorou muito perguntando pelo Joseneide.
Mas, meu Deus! Como poderia eu me separar do pequeno Joseneide? Mas também não seria justo eu dar meus filhos para aquela mulher e ficar por perto sem deixá-los seguir sua vida! Então não me restam muitas opções: dar os filhos e sumir, ou, provavelmente, ficar sem eles e deixá-los no conselho tutelar até que eu arrumasse um emprego. Mas, arrumar emprego de quê? Aonde? Se até os estudados estavam desempregados?
O juiz me olhou com uma cara de raiva, a assistente social também, e eu senti que só sairia bem dali se fizesse o que queriam: dar meus filhos para aquela mulher, aquela santa mulher que sempre cuidou deles sem o menor interesse, mas que agora me cobrava todos os dias e noites de sossego que me dera.
Assinei todos os papéis até sem sentir. Só pedi para conversar com eles antes de ir embora. Dona Maristela insistiu para que eu não ficasse longe deles, mas eu sabia o que tinha a fazer.
Fui até a creche onde estavam as duas meninas e consegui conversar a sós com elas. Me beijaram carinhosamente e disseram:
- Mãe, nós sabemos que somos um encargo em sua vida, por isso vamos nos separar. Os meninos estiveram aqui no muro e combinamos de fugir hoje à noite. Estaremos todos juntos, e você sabe que nos viramos muito bem sem aquela tia chata. Pode seguir sua vida tranqüila, que vamos ficar bem. Com você perto da gente também não dá, pois não podemos ser livres.
Depois fui ver os pequenos. Quando me viu, Joseneide correu e se escondeu atrás do escorrega junto com a irmã. Os dois estavam limpinhos, bonitos e arrumados. A única coisa que pude ver de longe era o brilho dos olhos azuis do meu filho querido.
Eu me despedi de dona Maristela, enxuguei o rosto e me pus a caminhar. Abri o pacote que ela me deu e achei R$ 200,00. Nunca em minha vida eu vi tanto dinheiro junto! Neste momento meu coração doeu apertado: senti que tinha vendido meus dois filhos por R$200,00! Estava passando sobre o viaduto neste momento e só me lembro que voava, voava, quando vi seus olhos azuis brilhando e você me oferecendo a mão.
E juntos chegamos aqui assim, voando.
Agora pode me dizer onde estou?
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